terça-feira, 13 de novembro de 2007

Jogo de Cena: um palco discute a realidade

Os irmãos Lumiére filmam O Lanche do Bebê, e Melies detecta na primeira projeção da história do cinema a imagem que salta da tela – as folhas se movem, diz o mágico que também vai ser cineasta! Flaherty reconstitui posado o que sua observação visual e intelectual detecta da realidade em Nanook, the North, e dá aos nativos arpões que eles não conheciam em 1922. Linduarte Noronha reconstrói o quilombo em Aruanda, e abre no início dos anos 60 um panorama para o Cinema Novo e o documentário contemporâneo. Inal Mama registra (ou reconstitui?) em 2007 na Bolívia o ritual do jawaico com a oferenda das folhas de coca e recoloca no cinema a tradição cultural apresentada por Sanjines em Iawar Mallku, em 1969. Eduardo Coutinho, o mestre do cinema-verdade no documentário brasileiro com seus personagens-sujeitos carregados de “veracidade” desconstrói seu próprio modus de fazer cinema e faz da praxis teoria quando mistura depoimentos aparentemente reais com interpretações em Jogo de Cena (2007) e produz um marco no cinema brasileiro que deve aumentar a discussão sobre a questão da realidade no cinema de não-ficção: nem tudo é verdade, diz o cineasta do cinema-verdade!

Não estão aqui os campos simbólicos onde transitam os personagens, mas o próprio cenário onde as entrevistas foram realizadas, o palco de um teatro, suas cadeiras e suas luzes, atuam como a simbologia máxima daquilo que o diretor coloca no título: Jogo de Cena. Tudo é encenado na vida, não existe separação entre o filme natural e o filme posado, como distinguia Paulo Emílio Salles Gomes, não existem barreiras entre documentário e ficção, parece dizer Coutinho. O cineasta que saiu da ficção para o documentário agora afirma que tudo é a mesma coisa, a verdade está intimamente ligada à personagem, aos fatos e ao que o diretor quer deles.

Jogo de Cena começa contrapondo depoimentos aparentemente reais, as falas de personagens sobre suas vidas, com a interpretação de atores profissionais dessas mesmas falas. Mas tudo começa a embaralhar quando o filme avança, não bastasse o espectador perceber que os depoimentos, por mais emocionais que sejam, vêem carregados de pré-juízos colocados pelas personagens quando olham para a câmera, pelas atrizes que se perdem entre interpretação e sentimento e pelo próprio diretor ao colocar suas intervenções.

Coutinho volta a tratar de um tema que é recorrente em seus últimos filmes – a vida e a morte – a vida na insistente escolha de mulheres que falam de seus filhos, a morte na presença de pais que já foram ou estão ausentes. Um prato típico para a catarse que os personagens incorporam – e catarse é a relação freudiana com a verdade, ou seja, e mais uma vez, nem tudo que se ouve é verdade!

A mulher que perde o marido depois de 25 anos de casamento e logo depois o filho que volta em sonho como anjo não se sabe se é personagem ou atriz, porque são duas mulheres desconhecidas que fazem depoimentos praticamente semelhantes, com o texto na maior parte do tempo exatamente igual. Quem é atriz e quem é personagem?
A garota que olha incisiva e se posiciona para a câmera parece dar a dica de que está interpretando um papel muito bem, quando afirma que em um momento da vida decidiu que seria atriz, depois de colocar a questão que a inclui no filme – a briga com o pai e os cinco anos em que moraram juntos e nunca mais se falaram. A rapper canta para Coutinho, olha para Coutinho, mas está cantando para o público que a assiste nos shows na periferia. A reumatóloga turca que diz ter salvo muita gente mostra um perfil rancoroso na tradução do próprio nome – bílis escura – mas volta ao final para se reconciliar com Coutinho, com o público que sabe vai ver o documentário e com a própria filha – a abertura que o diretor concede como se quisesse na canção emocionada do final dizer para o espectador: cinema é um jogo de cena, essa é a minha verdade, faça dela uma âncora para o seu próprio conhecimento e descoberta, porque, no cinema, nem tudo é verdade! F for Fake, como já disse Orson Welles, em 1974. Ou seja: a verdade também pode ser uma mentira!