
Cidadão Kane ganha mais força ainda visto por outros olhos, além da revolução estética. Reflete o panorama político e cultural de um período importanto dos EUA, que se repete atualmente.
New Deal e Popular Front
Os primeiros movimentos da esquerda nos EUA têm início em 1910, quando há uma primeira conexão da esquerda com a arte no bairro boêmio de Greenwich Village. O mesmo Village que vai ajudar a incendiar os anos 60, e coloca Bob Dylan nas manchetes dos jornais.
Com o crack da bolsa de 29 e a Depressão nos anos 30, intelectuais, escritores, artistas se conectam com iniciativas de esquerda. Ao mesmo tempo, depois de 29 surge um movimento de massa poderoso, chamado Popular Front, baseado nas organizações dos trabalhadores que tinham o CIO - Confederação de Organizações Industriais como sede.
O Popular Front nasce a partir desse movimento operário, do movimento anti-fascista, das lutas políticas da corrente esquerdista a favor do New Deal. Unia comunistas, socialistas, sindicalistas. Não era um partido, mais um bloco histórico, ligando tendências de esquerda. Tomou três aspectos: uma política social democrata, um posicionamento anti-fascista e anti-imperialista, e a luta pelas liberdades civis.
O Popular Front vai financiar movimentos de entretenimento de massa, com o desenvolvimento de um aparato cultural de que Orson Welles vai se beneficiar quando chega aos Estados Unidos, em 1934, e começa a fazer teatro.
Na política, Roosevelt ganha as eleições em 1932, denunciando os problemas na economia, mesmo sem apoio da imprensa na época, que nunca aceitou o seu programa de reformas, o New Deal. Assume em 33. Welles chegou da Europa, estava profundamente envolvido com a cultura européia e apoiava o compromisso político do New Deal de Roosevelt e a luta anti-fascista.
A situação nos Estados Unidos na época era complicada, antes mesmo da guerra. O New Deal aumentou os impostos dos ricos e criou a legislação de proteção aos sindicatos. Ao apoiar os sindicatos dos trabalhadores, beneficiou também a classe artística, principalmente o pessoal do teatro que estava diretamente envolvido com as manifestações dos trabalhadores e os movimentos da esquerda. Intelectuais, escritores, artistas apoiavam as regras do New Deal. E ele dava emprego para a classe artística.
William Randolph Hearst era dono de uma rede de jornais, e usa seu poder para atacar o New Deal. Em 1936/37 a Suprema Corte tentou derrubar a legislação do New Deal e não conseguiu. Um milhão de mulheres integram o movimento “Mães da América”, patrocinadas por Hearst.
Welles tenta com um esforço crítico e estético um ato de totalização.
Quer transformar a trajetória do indivíduo em trajetória histórica. E cria o Cidadão Kane, baseado em Hearst.
O Mercury Theater
Quando chega aos Estados Unidos, em 1934, Orson Welles passa a integrar imediatamente o grupo de John Houseman, que faz teatro com apoio da Works Progress Adminstration, braço do New Deal que dá dinheiro ao Federal Theater, que mantém um programa assistencial para o teatro. O Federal Theater chegou a ter 15 mil pessoas em sua folha de pagamentos, recebendo em média 20 dólares por semana. Com o financiamento, os artistas ofereciam peças a preços populares, envolviam os trabalhadores. Durante os quatro anos em que funcionou, suas produções foram vistas por mais de 30 milhões de pessoas em mais de 200 teatros e palcos portáteis, escolas e parques públicos. Era um movimento espetacular, envolvendo o partido comunista, os sindicatos, a esquerda que crescia no país.
Em 34 Welles tinha 19 anos, mas chegava de uma experiência gloriosa na Europa, onde fazia teatro desde os 15 anos e era considerado um gênio já aos nove anos. Se engajou na Frente Popular e no Teatro do New Deal, no grupo de Houseman. A primeira produção se chamava Panic, uma peça anticapitalista sobre o crack da bolsa em 29. A terceira e última noite de apresentação foi reservada exclusivamente aos assinantes da New Theater, revista ligada ao Partido Comunista.
Em 37 montou The Cradle Will Rock, peça brechtniana. Às vésperas da estréia, o Works Progress Administration pediu que todas as produções em que estava envolvido fossem paralisadas, acabando com o programa. A peça foi apresentada uma única vez, de forma independente, apesar da proibição do sindicato, e ganhou notoriedade imediata. Welles funda então, com Houseman, o Mercury Theater, independente. O grupo produz >b>Macbeth, Julio César (com um César negro retratado como fascista, rodeado de camisas pretas). Welles quer levar grandes peças ao público comum, seu nome cada dia mais é comentado na mídia. O Mercury Theater faz sucesso, fecha um contrato com a CBS e cria o Mercury Theater of the Air, programa radiofônico onde Welles é autor, intérprete, comentarista. Em 1938 transmite ao vivo A Guerra dos Mundos, onde encena a invasão de marcianos à terra. O programa abala grande parte dos americanos, que acreditam que o país está sendo realmente invadido por alienígenas. O nome de Welles vai para as primeiras páginas dos jornais. E ele fecha o maior contrato já feito por um artista com Hollywood - um contrato para produzir dois filmes, com absoluta liberdade de criação, limitado apenas pelo orçamento que não podia ultrapassar 500 mil dólares.
Estética e política em Cidadão Kane
Welles estava intensamente envolvido na política do seu tempo e tentou mostrar no filme a história recente dos EUA. O filme mostra um panorama da história do personagem que vai de 1890 até 1940.
O contrato foi assinado em julho de 1939. O roteiro começou a ser produzido no final de 39 início de 40, já no meio da segunda guerra, quando a ameaça fascista chegava no auge, a ofensiva alemã atravessava a Europa.
Nos Estados Unidos a grande discussão era se os americanos deviam intervir ou ficar isolados. Hearst era favorável ao isolacionismo, não queria que os EUA entrassem na guerra. Roosevelt - e Welles apoiava o presidente - era partidário de uma intervenção, para evitar a ameaça do fascismo.
O filme estréia em 1941, depois de uma guerra em Hollywood, porque era uma crítica aberta a Hearst, que mantinha relações estreitas com o cinema e era casado com uma atriz, reproduzida de maneira negativa na tela. O filme se transformou em um incômodo para a indústria antes da estréia, a RKO recebeu uma oferta de 1 milhão de dólares para queimar a cópia. Mas a produtora não aceita as pressões e Cidadão Kane estréia, antes da entrada dos EUA na Guerra, em maio de 41. O ataque a Pearl Harbour só acontece no final do ano, seis meses depois.
Kane nasce em um momento em que o cinema americano e a literatura eram muito centrados na estética do noir, com suas histórias de limites palpáveis. O claro e escuro no filme noir, que trabalha o espaço asfixiado, a falta de espaço público. Todo filme noir se passa quase inteiramente entre quatro paredes, em um quarto de hotel, no escritório do detetive, na sala da mansão. Essa era a experiência americana. Daí surge Kane, em um momento em que as forças da ideologia em cima da produção artística eram muito fortes.
O noir expressa, de certa maneira, as ansiedades políticas do período. As conquistas dos anos 30 já estão se autocorroendo. O New Deal quer um capitalismo ameno, não quer o socialismo. Mas a própria vitória do New Deal vai promovendo a homogeneização e vai alimentando uma posição reacionária.
Kane é um marco, muitos vêem no filme uma tentativa de dissolução do modelo narrativo na tentativa de criar um sistema estético que tenta visualizar de forma total uma sociedade fragmentada.
Ou seja, o filme nasce em um momento de transição, um momento histórico - os grandes valores passam a ser a pátria, o sangue (fascismo).
A vitória política do personagem Kane seria a vitória do fascismo, o discurso de Kane é um discurso fascista, por isso ele conta a trajetória do fracasso de um sujeito, ao invés de uma trajetória de sucesso. E faz uma leitura edipiana dos personagens, e uma leitura marxista também do momento histórico.
O filme é uma alegoria da história americana, da República de Lincon e do fim da guerra da Secessão (final do século XIX), da elite no centro da vida nacional para o movimento operário que nasce no New Deal. Kane faz o mapeamento dessas promessas que não deram certo. O casamento da estética com a política caracteriza ascensão do fascismo na época, a estética foi uma das armas que os alemães utilizaram nas manifestações que promoviam, com o uso de luzes e painéis gigantes.
O macartismo e a caça às bruxas
Neste caos idealista, o senador Joseph McCarthy criou, em 23 de setembro de 1950, o Comitê contra as Atividades Antiamericanas, o período conhecido como "macartismo" (1950/1958). A derrota dos nacionalistas na China e o início de testes nucleares na URSS propiciaram o nascimento de uma psicose anticomunista que gerou consequências desastrosas, como a abertura de processos contra intelectuais esquerdistas e estrangeiros suspeitos de espionagem (o casal Julius e Ethel Rosenberg). Essa caça às bruxas ocasionou denúncias e perseguições a todos aqueles considerados suspeitos de alguma coisa. O cinema e os quadrinhos foram os alvos principais da investida conservadora.
O senador Joseph McCarthy desencadeou uma feroz campanha anticomunista, levando dezenas de artistas, produtores e intelectuais à falência e ao desespero. Muitos entraram na lista negra apenas por serem suspeitos de pertencer ao Partido Comunista ou de simpatizar com os ideais socialistas. Um dos alvos dessa campanha foi Charles Chaplin, perseguido pelo FBI por causa de seus filmes de temática humanista. Chaplin acabou deixando os Estados Unidos em 1952.
Profundidade de foco
O filme abre com uma câmera subjetiva, inquisitória. Mas normalmente a câmera subjetiva substitui o olhar de um personagem, e aqui esse personagem não existe, a própria câmera é o personagem e intermediária do olhar do espectador. Quando a câmera mostra a placa com o letreiro No Trespassing pregado no muro de arame cria um distanciamento imediato. Ela dá o mote do filme, entra na ação, nós ficamos como observadores através de sua lente. A câmera vai continuar sendo narradora durante todo o filme, fora do mundo da história, como o olho da platéia.
A fotografia no filme deixa mais forte o conceito de iluminação e câmera como dois elementos que se complementam. Welles assimila o conceito da Life, a revista que nasce em 1936 e coloca a fotografia como o aspecto mais importante da reportagem. O criador da Life já havia criado o documentário The March of Time, em 1931, que levou para o cinema em 35. Welles trabalhou nas reconstituições e finalizações do programa e o levou para Cidadão Kane. Ele foi a fonte do News of the March, o noticiário que aparece no início do filme e que manda o repórter investigar sobre Kane.
A grande revolução no filme é o uso da profundidade de foco em toda a narrativa. Na profundidade de foco, as justaposições dramáticas são compostas dentro do quadro, eliminam os ângulos invertidos, a intercalação de tomadas constantes. Tecnologia, estilo e estética. É uma visão totalmente diferente da montagem rápida e da montagem em cortes. A profundidade de foco abre espaço para a interpretação e organização livre de idéias, para a participação do público, aliás, uma fórmula anti-hollywoodiana. A montagem rápida, como o videoclip, anestesia a liberdade, não deixa o expectador pensar.
Freud em Welles
A primeira cena do menino mostra o conflito edipiano que acompanha o personagem de Kane durante todo o filme: o apego à mãe, a agressão ao pai substituto e o pequeno trenó, o símbolo da perda nesse triângulo edipiano. Durante o filme, Kane continua a lutar com seu tutor, o pai substituto (o seu jornal apóia os que sofrem).
A segunda parte do filme destaca o fetiche: Kane acumula coisas para encher o vazio da primeira parte. Morre rico e solitário, cercado pelos detritos da cultura européia. Aqui o filme faz a critica ao isolacionismo dos EUA em relação à guerra: na verdade, se os Estados Unidos não tivessem entrado no conflito, o mundo hoje seria outro, com a possível vitória das forças conservadoras do fascismo.
Na abertura do filme também está muito clara essa relação edipiana, na cena da cabana na bola de vidro que cai da mão de Kane quando ele morre e fala a palavra chave do filme: Rosebud. A cabana na bola de vidro é a mãe que ele perdeu. O isolacionismo de Kane é metáfora para o isolacionismo dos EUA na guerra.
Texto: Luiz Carlos Lucena
jornalista e roteirista