quinta-feira, 26 de novembro de 2009

A Linguagem do Documentário invade a ficção


A partir do momento em que passou a reproduzir na tela personagens ligados à realidade brasileira e cenários realistas, o cinema brasileiro começa a flertar com a linguagem documental e entra nessa produção hibrida que vem marcando mais fortemente a cinematografia brasileira contemporânea. Aruanda, de 1960, o documentário de Linduarte Noronha que mostrava um jeito novo de ver o Brasil, vai refletir fortemente nos cineastas do novo Cinema Novo - Cinco Vezes Favela, os primeiros filmes de Glauber. Personagens tirados da vida real, locações reais ao invés do estúdio característico dos filmes anteriores da Atlântica e da Vera Cruz.
Nos últimos anos, particularmente na segunda fase do chamado Cinema da Retomada, deflagrado a partir de 1995 com o filme Carlota Joaquina, de Carla Camurati, o cinema brasileiro de ficção vem marcado pelo uso recorrente de algumas características muito presentes no documentário, como a presença de atores amadores recrutados no próprio ambiente das locações, a reprodução de cenários cada vez mais realistas e o uso de temáticas já exploradas anteriormente em documentários.
Nesse sentido o debate sobre a influência do documentário na ficção ganha força principalmente quando se analisa a representação dos produtos culturais – e como eles se manifestam naquilo que têm de mais expressivo, a tentativa de reprodução da realidade a partir da produção simbólica do indivíduo social.
Na realidade o documentário passa por mudanças fantásticas nos últimos anos, acompanhando o movimento de retomada do cinema brasileiro de ficção. E não apenas na qualidade e quantidade de produtos, mas principalmente nas novas formas de abordagens e linguagens adotadas pelos cineastas, muito deles originados da ficção ou de áreas distanciadas como a arquitetura, antropologia e as ciências sociais. Nesse sentido, enquanto o cinema iniciava um novo ciclo de produção e de namoro com o público, o documentário saía daquele formato basicamente etnográfico e sociológico, da voz do narrador que coloca uma hipótese que é justificada pelas imagens, ressurgindo com filmes mais vibrantes que passam a tratar de questões sociais. São exemplos em uma fase mais remota, nos anos 80, os documentários do início do globo repórter. Nos últimos anos, a linha natural das biografias e retrato de comunidades e uma sequência de filmes bem subjetivos, onde os diretores começaram a ousar tecnicamente e a se colocar dentro dos filmes, abrindo esse espaço para a subjetividade que Santiago de João Moreira Salles (2008) vai consolidar definitivamente.
Nessa diversidade da produção documental, dois diretores vão marcar o cenário e vão influir decisivamente na produção de ficção, os filmes de Eduardo Coutinho feitos na favela – Santa Marta, Babilônia – e principalmente o filme de João Moreira Salles, de 1998 – Notícias de Uma Guerra Particular - que vai marcar na temática e na linguagem alaguns filmes que se destacaram na ficção nos últimos anos – primeiro Cidade de Deus, depois Tropa de Elite, Era uma V ez e Última Parada 174.
Os diretores de ficção passaram a usar a temática que estava nos documentários – a violência urbana, principalmente a favela carioca – e absorveram a linguagem dos documentários com a câmera na mão acompanhando os personagens, e principalmente a forma de filmar, em locações e com personagens locais. Cidade de Deus fez sucesso e deve isso em parte a sua característica documental. Tropa de Elite repete cenas e temas de Negócios de Uma Guerra Particular.
Na realidade, o primeiro filme em que podemos detectar essa tendência é Central do Brasil, que nasceu a partir de um documentário realizado pelo próprio Walter Salles com uma presidiária que escreve cartas. O filme chama-se Socorro Nobre, é uma obra fantástica, e conta a história da prisioneira que escreve para o escultor Frans Krajcberg. O documentário começa e o espectador é conduzido pelo que parece ser uma biografia de Krajcberg. Em determinado momento, no entanto, o artista conta que recebe muitas cartas, e que uma delas o emocionou, então o filme deixa o escultor e passa a focar a trajetória da mulher. Socorro vai reler as cartas que enviou e em sua fala reconstrói novamente a história de Krajcberg, repetindo o que leu sobre o escultor em uma revista, e ao mesmo tempo colocando sua própria biografia, seus sonhos quando sair da prisão. Essa personagem deu origem a mulher que escreve cartas na Central do Brasil vivida por Fernanda Montenegro e já ali, no filme, a câmera se comporta como se estivesse fazendo um documentário, principalmente nos depoimentos: a locação é real, os personagens reais interagem com a atriz, mesmo o nome do filme é o nome da locação.
Walter Salles lembra também que para filmar Central do Brasil (1998) a cena na frente da igreja onde Fernanda vai procurar o menino, ele queria mostrar a manifestação das pessoas naturalmente então distribuiu 700 velas e transformou todos em figurantes naturais e evitou a iluminação artificial dos holofotes.
Em 2008, em Linha de Passe, ele segue a mesma fórmula, o filme é baseado em dois documentários de seu irmão, um sobre futebol e outro sobre religião.
Seu irmão João Moreira Salles não imaginava que o método de filmar, a temática e a linguagem que adotou em Notícias de Uma Guerra Particular, do mesmo ano, 1998, seriam tão influentes no cinema de ficção. João pagou o traficante Marcinho VP para filmar no morro, subiu os becos da favela com a câmera refazendo de forma calma, diária, o que o telejornalismo sensacionalista já havia feito com a câmera nervosa. O filme acompanha os personagens com a câmera na mão, mostra aéreas das favelas, ouve os depoimentos dos traficantes e da comunidade, insere a visão da polícia. O cineasta José Padilha trabalhou na produção do filme, assim vai recolocar o Capitão Pimentel, do Bope, que é um dos personagens narradores de Negócios de uma Guerra Particular nos depoimentos do seu documentário Ônibus 174 e depois como o próprio personagem Capitão Nascimento de Tropa de Elite. O roteiro de Tropa foi escrito pelo mesmo Capitão Pimentel e por Bruno Mantovani, roteirista de Cidade de Deus, daí ter a mesma forma de história circular que deu certo nesse filme.
Em Tropa de Elite, Padilha adota o plano seqüência de forma exagerada, que é usado com parcimônia em Noticias de Uma Guerra Particular. Depois de Tropa, sucesso e case de marketing com as vendas nos camelôs ultrapassando o milhão de cópias, veio Era uma Vez, também com locação e atores da favela, e ainda Linha de Passe e Próxima Parada 174, a ficção do documentário de Padilha, Ônibus 174. Ou seja, cada vez mais os filmes de ficção se inspiram nos temas e na linguagem do documentário e ganham prêmios, bilheteria. Central do Brasil ganhou o Urso de Ouro em Berlim, Linha de Passe recebeu o premio de melhor atriz em Cannes. Tropa de Elite é sucesso mundial também.
Era Uma Vez vai usar novamente o universo da favela, mas os produtores queriam que o diretor Bruno Silveira utilizasse parte dos cenários de estúdio e ele se recusou, quis fazer todo o filme na favela, subiu o morro e como Moreira Salles pagou os líderes da comunidade, construiu um centro médico que custou 60 mil reais. Bruno também trabalhou como câmera de Eduardo Coutinho em Santa Marta, conhecia a realidade das favelas, e diz que se inspirou no mestre em muitas coisas, principalmente nessa escolha de locações naturais porque queria imprimir a realidade do documentário na trama do filme.
O filme também usa atores da própria comunidade e muita figuração local – a festa de casamento foi feita com a comunidade e teve que ser interrrompida porque começou um tiroteio na hora das filmagens. Os figurinos e cenários foram feitos com gente local.
Esse uso da paisagem local e de atores não profissionais lembra o neorealismo italiano e o próprio cinema novo.
Walter Salles considera Linha de Passe seu filme mais influenciado pelo documentário, também usa não atores – os jogadores são jogadores reais, os evangélicos são evangélicos, o motoboy também. A festa de aniversário tem figurantes da casa vizinha ao set.
Fernando Meirelles nessa nova geração foi o primeiro a trabalhar com não profissionais e disse que deixou que seus atores – também inexperientes – se mexessem como eles achavam que era melhor, mesmo com todo o treinamento a que foram submetidos. Os atores inclusive participaram e alteraram a forma de falar e o texto do roteiro. O que é característica do documentário.
Tudo isso mudou ainda a forma de filmar. Quando se trabalha com atores profissionais, existe uma marcação quase sempre rígida dos movimentos no set. O ator não experiente não está acostumado com marcações rígidas, fica mais livre no set, se movimenta mais.
Essa maior liberdade muda os movimentos da câmera, permite o que se vê em Cidade de Deus e Tropa de Elite – a câmera solta que se desloca de um para outro personagem sem fazer o outro take ou contraplano, recurso muito usado nos seriados americanos. O plano seqüência feito na mão, sem corte, que Tropa de Elite usa muito, além dos enquadramentos típicos dos seriados norte-americanos. Com as câmeras mais leves digitais, o filme de ficção deixa de usar as gruas, tudo é mais próximo, real. Steadicams, gruas ou outras parafernálias eletrônicas não fazem parte dessa linguagem.
As falas dos documentários também vão entrar nos roteiros de ficção: antes bandido falava como gente comum, hoje nos filmes de ficção o bandido fala a gíria do morro, os personagens falam como conversam nas ruas.
“Estar no limite entre ficção e documentário é estar aberto à idéia de que a narrativa deve ser constantemente transformada pelo imprevisível, pelos acidentes que só a realidade traz. Em outras palavras, é necessário que o roteiro original seja desestabilizado constantemente ao longo da filmagem”, disse Walter Salles, comentando Linha de Passe.
“Como optamos por não ter figurantes no filme e sim pessoas que vinham realmente dos universos que estávamos retratando, éramos constantemente surpreendidos por coisas que não esperávamos. Para capturar aquilo que não estava no roteiro, era necessário trabalhar com equipamento leve, como num documentário. Essas novas cenas foram transformando pouco a pouco a matéria fílmica, de tal maneira que o filme final é muito diferente do filme que existia no papel”, diz.
Mais recentemente, Jean Charles, a ficção sobre a trajetória do brasileiro morto no metrô de Londres, volta a inserir em grande parte do roteiro uma parte fortemente documental, ao utilizar também atores não profissionais para falar de como vivem os brasileiros no exterior.
É bom lembrar que em todo esse processo o documentário, antes de ser um espelho da realidade, faz o tratamento criativo da realidade e funciona principalmente como mediador na busca de discussões na sociedade que dêem significado aquilo que se convencionou chamar de realidade.