quinta-feira, 2 de março de 2023

Kandango Cine

Kandango Cine
Enquanto a mídia rentista e o chamado mercado, esse ser abstrato tão presente na realidade brasileira -, enquanto eles discutem a reoneração dos combustíveis, o cinema fala de poço de petróleo e gasolina pirata. Como alguns filmes da cinematografia brasileira recente, que trazem a realidade dos grotões do país para as telas – vejam o ciclo de filmes do nordeste e o mais recente Noites Alienígenas, o lisérgico filme produzido por Sergio de Carvalho nas bordas de Macapá – agora Adirley Queiróz coloca no cinema novamente a cidade em que mora, no subúrbio do subúrbio de Brasília, mostrando paisagens, ambientes e personagens da favela Sol Nascente, da Ceilândia, em revisão. O filme Mato Seco em Chamas chamou a atenção da crítica novamente para esse cineasta diferenciado, muitos consideram esse o filme mais interessante da safra recente da produção brasileira, mas deixo esse lugar para projetos menos radicais e mais estruturados dentro de uma linguagem cinematográfica estabelecida, como o já citado Noites Alienígenas e Marte Um. Mas voltamos a Mato Seco – o filme é outra radicalização de Adirley nos métodos de produção e traz o que chamei no debate e fui contestado pelo próprio diretor de hiper-realidade na apresentação dos personagens e nas locações e ambientações presentes. Tudo parece imperfeito, mas absolutamente real no filme, das construções cenográficas – e aqui vejo a onipresença do poço de petróleo, uma traquitana feita de restos que funciona perfeitamente como uma realidade distópica – à fábrica de tijolos, com uma máquina que também parece feita de pedaços de outras máquinas e ao caveirão da polícia, um monstrengo que parece roubado de Mad Max com “tecnologia” embarcada nas telas internas que mostram os caminhos que o veículo está percorrendo. Tudo parece fake mas tudo é muito real – a fábrica de tijolos sem dúvida. Essa é a cenografia que permeia o filme, mas nada disso teria sentido sem as personagens, todas mulheres - os homens só estão presentes na gang de motos e na motociata da candidata que promete fazer “coisas pelo bairro, porra!”. São três mulheres na cabeça do filme, todas personagens reais, pinçadas entre a população da Ceilândia. Lea Alves é a presidiária que acaba de ser solta e vem ajudar a irmã Joana Darc (apelido Chitara) a produzir petróleo no poço pirata e refinar e vender gasolina usando motoboys. Interessante a cena em que discutem o percentual que vai caber a cada um, parece a realidade paulista do lumpem de proletários das duas rodas que movimentam a cidade recebendo ninharias. Andreia, a terceira personagem, é a amiga e candidata a deputada distrital. Essas mulheres falam de suas realidades pessoais cobrindo o fio de história do roteiro do filme com o que parecem depoimentos documentais. Pergunto sobre essa realidade do ator-sujeito e Joana Pimenta, a fotógrafa portuguesa codiretora do filme se defende e diz que não é nada disso, que os depoimentos são fruto da atuação das meninas. Adirley complementa – essas que você viu na tela não são elas, responde. Insisto: não são elas depois do filme, certo. Não, defende Adirley – elas são realmente essas atrizes fantásticas que você viu, apenas falam sobre suas realidades, mas como atrizes, não como personagens – e cita uma cena que diz ter gravado oito vezes. Ele dá a isso um nome: “etnografia da ficção”. Compreensível. De Adirley pode-se esperar tudo. O filme tem achados maravilhosos, a começar pela fotografia da Joana. O fogo está presente quase sempre, iluminando o ambiente das gravações, dando textura às imagens e construindo perfis dos personagens muito interessantes no claro-escuro do fogo contra a escuridão. A periferia de Ceilândia está ali, nas imagens que se contrapõem ao skyline de uma Brasília horizontalizada que ocupa o fundo como se a cidade do poder quisesse suplantar o bairro-cidade pobre. São imagens lindas – com destaque para a cena em que a atriz faz guarda ao poço de petróleo e ao fundo sobre o skyline de Brasília sobem os fogos de artifício da manifestação verde-amarela apresentada na cena anterior. Sim, eles gravaram e colocam no filme trechos da manifestação bolsonarista que tomou conta de Brasília na pré-eleição. Contradições, ainda diz Adirley, sobre sua filmografia. Ele não usa um roteiro tradicional, pega uma linha de argumento e sai gravando, pra ver no que dá. Diz que jogou muito material desse filme fora, quando chegou a pandemia e o filme caminhava em um sentido que não tinha mais a ver com nada. Melhor assim, construiu com essas atrizes-personagens maravilhosas um filme único, que merece ser assistido. Quando o país brinca com o conservadorismo, a atitude das gasolineiras é um ato político revolucionário.